sábado, 4 de dezembro de 2004

Vento nas brasas

Ela se atrasara de propósito, embora conscientemente não tivesse idéia do motivo... Inconscientemente sabia que estava certo assim. Há tanto tempo não se deixava levar pela intuição!

Uma brisa soprava de leve, estranhamente, mas ela não lembrou. Nem cinco minutos depois, na rua repleta de gente, ela o viu de longe, tão longe quanto a lembrança. E todas aquela perguntas óbvias lhe ocuparam a mente: será ele mesmo, quanto tempo faz, como ele estará, e as crianças, quem são...
Todas as perguntas com respostas.

E, naquele mesmo segundo, outra onda quebrou mais forte e ela se lembrou de tudo o que viveram: as conversas intermináveis, os olhares profundos e aquela peculiaridade interessante de bastar pensar nele para ouvir o telefone tocar, ou, se estivesse na rua, e sentisse, de leve, uma brisa a chamar seu nome, era só procurar para vê-lo acenando de dentro de algum ônibus... Era só procurar. E era tudo tão natural que ela nunca tinha reparado nisso. Até hoje.

Estava agora a cinco passos dele... Seria ele mesmo? Poderia ser o irmão... tanto tempo.

Uma grade os separava, os olhares se uniram, ele a chamou pelo nome, ela parou e sorriu.

Era ele.

Como ele estava bonito e tão, mas tão mais velho... cabelos brancos!

De repente, tão de repente quanto o portão se abriu, dez anos se abateram. Como você está? E os pensamentos, sempre tão visívies para os dois, agora assomavam de os assustar.

Mas era preciso falar! Ele desviou o olhar, chamou a esposa, apresentou-a, mas esqueceu de dizer seu nome... Na mente dela, o nome de todas as namoradas desfilaram; a última tinha sido Marta... ela resolveu não arriscar.

É provável que ela realmente não soubesse o quanto o seu olhar perturbava, já que ela não tinha mesmo a menor intenção. Acostumados desde muito cedo a longos períodos silentes, perscrutando-se pelo olhar, foi com um estranho pesar entremeado de alegria que ele, orgulhoso, chamou a moça que segurava uma menina, sua filha, para apresentá-la também.

Aqueles dois olhinhos azuis fitaram a moça parada no portão... O céu todo se abriu num sorriso! Estava nublado,  mas, ali, houve sol. Era impossível não reparar. Maria sorria para ela como se a conhecesse de muito tempo mesmo; como se a reconhecesse; como se compreendesse todo o amor do pai por aquela moça, todos os segredos, os dez anos passados, todo o silêncio.... E Maria era um bebê que sorria pleno de olhos azuis para uma moça até então desconhecida!

Despedidas rápidas.
Sorrisos e adeuses.
Lágrimas... sorrisos...

Ondas múltiplas num mar agitado... Os olhos azuis de Maria talvez a chamassem de mãe.
No sorriso de Maria a confirmação de que tudo existiu.

De repente. Calmaria!

Agora, talvez, ela diga a ele, pelo fio do pensamento, como antigamente:

"Como sou feliz de te ver, Marcus Vinicius!
Feliz de ver nos teus olhos a mesma expressão de amor que existiu entre nós, um amor nunca profanado.
Feliz de ter guardado todas as tuas cartas, tua letra de médico antes mesmo de vires a ser um. E o carinho das letras refletido hoje em teu olhar.
Feliz de ver que recusar teu velado pedido de casamento, há tantos anos, foi o certo.
Continuo te amando, como sempre.
E tu também continuas me amando, como sempre.
Prossegue com Deus, eterno amigo de minh'alma, brasa em meu coração.
Tuas palavras últimas seguem sempre comigo, quando citávamos Rochefaucauld:

o tempo aviva os amores reais
e destrói as paixões medíocres
como o vento aviva as brasas
e apaga as velas."


Do outro lado da cidade, agora, ela o vê sorrindo.
Ele se agita, todos reparam, ele queria apenas um minuto a sós consigo mesmo.
Pronto, ele também a viu sorrir.

Tudo é serenidade!
A vida hoje é de uma alegria, uma leveza só compreensível aos que amam...
Tão fácil, tão simples!
Tão amena!

Todas as brisas,
Carla

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